segunda-feira, 21 de julho de 2008

Cântico Negro (José Régio) dito por João Villaret



"Vem por aqui" - dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom se eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui"!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!

6 comentários:

Tulius Detritus disse...

Grande escolha...
Há já muito que tinha pensado publicar este poema... só o texto já que nem sabia que existia no youtube...

Tulius Detritus disse...

É curioso ouvir e ler simultaneamente... e perceber que há uma série de alterações ao original.
Vindas de quem vêm, até são "desculpáveis"...
PS: Tive o cuidado de comparar a transcrição com outras e está correcta.

Vital disse...

Isto é o chamado dois em um: um dos melhores poemas em português porventura pelo maior diseur nacional: à Fernando Gomes «Bibuota d'Ouro) diria: é tom buom cumum orgasmo, carago!

©arloslemos disse...

Bem, eu não sou muito de agarrar poemas. Agarro mais citações, pensamentos e literaturas afins. Mas não posso ficar indiferente ao João "Recitão". Mesmo quando dava na TV era sempre um momento de paragem para ouvir. Grande homem, faz ouvir com prazer aquilo que não se aprecia ouvir. Ouviram?

Al Prazolam disse...

Também já estava na minha lista (ah, ah, também tenho uma, também tenho uma) de pré-postes.
E fico contente por saber que essa ideia também já andava a rolar noutras cabeças...

K disse...

Belo retrato de vida, este poema.
Parabéns Óscar pela ideia da sua vinda ao blogue.
Venham mais destes.