domingo, 2 de novembro de 2008

A minha primeira amiga!




Ao longo da vida todos temos encontros mais ou menos marcantes, pequenos episódios que ficam a balançar nevoentos na nossa memória, muitas vezes tingidos pelas cores douradas da nossa vontade e respectiva idade.

Vou contar um:

Entre os cinco e os sete anos vivi numa localidade angolana chamada Caxito e que mais tarde seria, por massacrada até à terraplenagem aquando da guerra, repetidamente falada nos telejornais.
Caxito tinha mais uma grande barragem (Mabubas) e uma grande fazenda (Tentativa) de cana de açúcar. Tirando isso, que era quase tudo, tinha uma pequena distribuidora de cerveja Nocal, um hotel, duas igrejas e um coreto.

Eu vivia junto à igreja grande e à rua principal (ver fotos acima) numa casa simples, térrea, e tinha como vizinhos um casal mais abastado com uma grande casa de família, carros, garagem, empregados, jardim enorme, cães e o diabo a nove. O casal tinha três filhas. Uma mais velha, outra bebé e a do meio com a minha idade, sensivelmente. Lembro-me muito bem desta. Éramos amigos, vizinhos, brincávamos juntos e eu gostava muito dela.

No meu penúltimo dia no Caxito, andava a brincar na varanda, e a minha mãe disse-me: «Olha, temos de ir ali a casa da Dona XXX porque morreu o Sr XXX». Fiquei lívido. Era a primeira vez que contactava com a morte assim de perto, conhecia bem o senhor e fiquei estarrecido.
Lá fui e fiquei sentado, na sala, onde velavam o corpo, sem conseguir olhar para o caixão; fiquei sentadinho a olhar para o chão, muito quieto, ao lado da minha mãe uma boa parte da tarde (como bem comportado que era - sina de filho único).
Rente à noite, a Senhora XXX perguntou-me: «Podes ir buscar a YYYY (a tal filha do meio) a casa da minha irmã»? Era tudo na mesma rua e eu disse que sim senhora. E lá fui.

Fui ter com a minha amiga que tinha acabado de perder o pai e sinceramente não sabia o que dizer. Não tinha nada para dizer. Fui buscá-la e viemos de mão dada pela rua fora sem trocar palavra. De súbito, ela parou, baixou-se, e apertou-me os cordões de um dos sapatos (ainda hoje sou preguiçoso com isso).
Eu fiquei imóvel, embasbacado, não queria que ela fizesse aquilo, mas não sabia como reagir e nem tempo tive para a deter. Quando se levantou, duas grandes lágrimas rolavam-lhe pela cara abaixo, tentou sorrir e eu ainda fiquei mais aturdido. Queria dizer-lhe que estava triste, mas não consegui. Lembro-me que sentia um nó absoluto e definitivo na garganta. Lá continuámos rua fora, de mão dada, silenciosos até casa.

No dia seguinte deixei o Caxito (onde nunca mais voltei) em direcção ao Ambrizete e nunca mais vi a minha amiga.
Mas onde quer que esteja, espero que os deuses lhe tenham sido favoráveis...

2 comentários:

Óscar disse...

Lindo!

©arloslemos disse...

Meu amigo, embora acompanhando diariamente o nosso blogue, tenho andado silencioso, mas perante o que acabo de ler é impossível não dizer nada. O que acabo de ler marcou-me. O que acabo de ler estarreceu-me. O que acabo de ler fez-me ficar imóvel a olhar para o texto. O que acabo de ler não é mais um post, é único. Obrigado pela partilha. I love you!