O Homem é um bicho esquisito. Mesmo esquisito. Talvez por que tenha exigências para além daquelas que estão directamente relacionadas com a sobrevivência, esta espécie de mamífero que não se vê como tal vive numa (quase) permanente insatisfação. Se por um lado este sentimento é o motor da criação e do avanço da humanidade, não deixa de ser verdade que causa não poucas vezes sofrimento, angústia e desalento. A procura incessante do prazer, a fuga para a frente, a necessidade de afirmação, a vontade de desligarmos, ainda que temporariamente, do peso daquilo que constitui a percepção da nossa própria existência, leva-nos por vezes a recorrermos a substâncias aditivas (leia-se viciantes) que, no imediato, constituem verdadeiras bengalas de apoio às nossas fragilidades.
Sou fumador. O cigarro ajuda-me em muitos momentos. Dá-me prazer. Mas, a que preço? Estarei verdadeiramente disposto a pagá-lo? As coisas vão sendo menos difíceis enquanto não começarem a surgir as facturas...
Há pessoas que têm esse condão mágico de porém no papel aquilo que vagamente vai nas nossas cabeças, de uma forma ambígua, nebulosa, indefinida e indefinível,e que por essa razão somos incapazes de expressar. Vasco Pulido Valente é um desses exemplos.
Li, há vários anos, numa das suas crónicas do Público, este artigo abaixo publicado. Parece que alguém me andou a sondar o íntimo...
"Viver sem fumar é como escrever sem pontuação. Pelo menos, para mim. A pequena cerimónia de acender um cigarro marca um "tempo": o princípio do dia, o princípio do trabalho, cada intervalo ou cada distracção, o alívio (ou o prazer) de acabar qualquer coisa, o almoço (quando almoço), o jantar (quando janto), o fim do dia, antes de fechar a luz, como um ponto parágrafo. O cigarro divide, acentua, encoraja, consola. Abre e fecha. É uma estação e uma recapitulação. "Já cheguei aqui. Falta ainda isto, isto e aquilo".
Nas poucas vezes que tentei não fumar, tinha um sentimento de desordem, de arbitrariedade, de não saber passar de um frase a outra ou de um capítulo ao capítulo seguinte. Os fumadores, se repararem bem, não fumam ao acaso; fumam com ritmo.O cigarro também é uma companhia. Sobretudo para quem trabalha sozinho. A maior parte das pessoas vai falando, pouco ou muito, durante o trabalho. Por necessidade ou por gozo próprio. Do "serviço" à intriga, há milhares de oportunidades para o grande e simpático exercício de conhecer o próximo: para gostar dele ou para o detestar, para o observar, o comentar ou o intrigar. De porta fechada, à frente de um computador ou de um livro, não há nada à volta. Aí o cigarro ajuda. É um fiel amigo: a pausa que torna o resto tolerável. E que, além disso, recompensa uma boa ideia ou manifesta o entusiasmo ou a execração pelo que se leu. Com quem se pode conversar senão com o cigarro?
De certa maneira, o cigarro substitui a humanidade; e não me obriguem a fazer analogias. Mas, principalmente, fumar serve para pensar. Quando, a ler ou a escrever, paro a meio de uma página, porque me perdi num argumento ou não consigo imaginar como se continua, pego num cigarro e penso. Não me levanto, não me agito, não abro a boca, não me distraio. Fumo e procuro com paciência a asneira. O cigarro concentra e acalma. Restabelece, por assim dizer, a normalidade. E este efeito "normalizador" é com certeza uma das suas maiores virtudes.
Não comecei a fumar para ser adulto ou "viril". Comecei a fumar porque sou horrorosamente tímido e porque o cigarro é com certeza a maior defesa dos tímidos. Primeiro, porque ocupa as mãos e simula um arzinho de à-vontade. E, segundo, porque esconde e protege ou cria a ilusão de que esconde e protege. Por detrás de um cigarro, o mundo parece mais seguro. Mesmo se andam por aí a garantir que não."
Vasco Pulido Valente, Público, 27/6/2008
4 comentários:
... CRIA A ILUSÃO de que esconde e protege. Por detrás de um cigarro, o mundo PARECE mais seguro.
Não sou fumadora, por isso não posso estar mais em desacordo com o texto, exceptuando as últimas duas frases.
Mas até compreendo. Pronto.
Conheci uma pessoa que morreu nova, vítima do cigarro. Toda a vida fumou (entre 4 e 5 maços por dia). No dia em que se assustou verdadeiramente fez aquilo que já tinha tentado fazer inúmeras vezes mas sem êxito: deixou de fumar de um dia para o outro, sem qualquer esforço. Não foi a tempo.
Neste último mês tenho acompanhado alguém que luta para não ser mais uma vítima do cigarro. Um diagnóstico muito reservado. Uma luta terrível onde só vão restando, mesmo, as esperanças.
Haverá imensa coisa que pode substituir o cigarro nessas inúmeras situações.
O problema, quando lidamos com substâncias assim, é a "puta" da memória (que pode ser muito traiçoeira).
Pardon my french!
Deixei de fumar já lá vão 19 anos.
Agora vivo melhor.
Com o dinheiro que poupei não comprei nada de especial.
Ajuda à sobrevivência.
As justificações para se fumar são as mesmas para se deixar.
Há vantagens dos dois lados da barricada.
Uma coisa é certa, fumar acarreta problemas íntimos da nossa relação com a natureza, sentimo-nos sujos quando fumamos; se praticamos desporto, temos vergonha de fumar; poluímos, estragamos a saúde, incomodamos terceiros, parece-me que não fumar dá-nos uma maior sensação de liberdade.
É bom não fumar.
Nos dias que correm, fumar é uma incoerência. Com a informação a que temos acesso...
É que já nem é "estilo", como nos filmes dos anos 50 / 60.
Certo, F.
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